quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Alquebrada



           Primeiro relato:
    
            A pessoa que me abusou foi minha própria mãe! Por anos, eu acredito que entre os 8 e os 12 mais ou menos.. È difícil saber com precisão porque a memória foi apagada até por volta dos meus 18 anos e mesmo assim quando voltou parecia uma ilha no tempo, algo vívido mas não relacionado a nada mais dos acontecimentos da minha vida.
          Lembro do rosto dela  observando minhas reações, dos carinhos que ela começava a fazer e depois ia descendo a mão até me masturbar como se não fosse nada, só mais um carinho como qualquer outro. E mais que tudo lembro da minha agonia que crescia quanto mais aquele toque me excitava e então daquele rosto reconhecer quando o desejo havia me tomado até sufocar e então ela parava, sempre agindo como se nada estivesse acontecendo. Era enlouquecedor, eu me odiava por sentir aquele desejo, ainda me odeio. Não dá pra relatar mais do que isso num único dia.
      Eu me sinto aleijada. Coisas na minha alma estão quebradas e nunca vão sarar! Mais especificamente meu senso de valor pessoal. Eu não presto. Saber racionalmente que isso é só a meus olhos não ajuda! Nenhuma racionalidade nem terapia conseguem me fazer sentir de outro jeito. Eu sou imunda, inútil, algo que não devia existir. Não tenho valor intrínseco nem dignidade a priori como ser humano. Não me sinto um ser humano. Nem um nada, porque o nada é neutro. Eu sou algo de desprezível, que merece ser punido e ocupar o lugar de tapete da humanidade. Sofrer. Sofrer é tudo que eu conheço.
        Na minha memória confusa acho que tinha cerca de oito anos quando minha mãe começou a abusar sexualmente de mim. Apaguei essas memórias por anos e mesmo hoje elas estão desconectadas de qualquer outra coisa que tenha acontecido na mesma época. Isso é estranho porque a parte das sensações físicas e emocionais é tão nítida! Mas é como se tudo sobre o abuso estivesse trancado num baú à parte e vai ver que é por lá, nesse lugar incomunicável, que ficou minha autoestima também. Inacessível para o resto de mim.  Resto é uma palavra boa para compor esse quadro, a sensação é mesmo de que o que sobrou fora do baú é um resto, não tem muita vida nem conexão com o real por mais que eu tente e eu tento muito. Mas anos de terapia ajudaram pouco.

        Mesmo antes dessa idade de oito anos, que foi quando nos mudamos para o apartamento em que todas as lembranças do abuso estão situadas, ela já fazia brincadeiras de cunho sexual, mas pareciam mesmo brincadeiras e aquilo não me assustava, não havia toques íntimos.  Mas quando começou a haver começou o terror. Ela começava fazendo carinhos normais entre mãe e filha e ia descendo com a mão até estar me masturbando. Ela o fazia olhando meu rosto com ar perscrutador e quando via que eu tinha me excitado demais, me enlouquecido demais para conseguir querer que parasse, aí ela parava como se nada tivesse acontecido e saía do quarto. Aquilo me deixava num inferno de sensações físicas que me enojavam e eu não queria sentir e não conseguia descarregar e num inferno pior ainda de sentir nojo de mim mesma por sentir aquele desejo. “E se descobrirem que eu sou uma tarada que transa com a própria mãe?” Esse pensamento me torturava e me fazia me enojar ainda mais de mim mesma. Minha garganta fechava reprimindo o desejo de ir atrás dela e pedir para continuar, falar algo... Nada nunca foi dito. Nem por ela, nem por mim, nem por minha família apesar de depois eu ter ficado sabendo que todos notaram.
        Hoje parece quase inacreditável que adultos tenham pensado como eu pensei, que a culpa fosse minha. Mas foi isso que eu soube depois, quando cresci e consegui falar a respeito. Uma tia avó materna tinha dito a meu avô que minha mãe e eu “éramos sapatão” e uma tia por parte de pai disse a meu pai que tinha visto minha mãe e eu beijando na boca. A tia que me contou essas coisas falou que era para eu não falar mais disso e meu pai disse para eu não trocar de roupa na frente da minha mãe. Ninguém me protegeu, nem quando criança nem quando eu contei. O que fizeram foi me isolar, meus primos foram afastados de mim, passaram a me olhar com desprezo e eu não sabia por quê. Hoje eu sei que só pode ter sido porque a mãe deles percebeu o incesto!
       Incesto é um crime de silêncio! Ninguém quer falar nem fazer o que deve. Denunciar, abrigar, proteger a criança e assegurar a ela que não foi sua culpa. Isolar e fofocar é mais fácil. Nem dá para descrever como eu me senti uma merda, um nada, quando eu soube disso, de como encararam. Minha dor não valia nada, eu não valia nada, se além de ninguém ter me protegido ainda me julgaram. A lembrança ter começado a voltar já tinha me deixado em um pânico paralisante, mas foi perceber a cumplicidade de todos que me fez querer morrer. Os muros de isolamento e silêncio em que eu passei a viver desde que o abuso começou engrossaram mais.  Eu desenvolvi fobia social e ela reforça ainda mais esse sentimento de não valer nada! 
     Já tinha feito trinta anos quando eu finalmente encontrei forças de procurar o serviço de apoio à mulher. Falaram que o crime já tinha prescrito e tudo que poderiam fazer era me colocar em terapia breve, que o serviço tinha sido feito para mulheres cuja vida estava em risco e até mesmo me oferecer terapia era abrir uma exceção. Aceitei a terapia, mais porque aquilo me dava a sensação de ter minha dor minimamente reconhecida. Mas logo depois me deram alta. Eu queria mesmo era ajuda para me afastar da minha mãe.

                       Aurora

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