quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Um outro Relato, a História de Esther

Esse blog não foi criado só para a minha história. Recentemente uma companheira de recuperação quis também partilhar a história aqui. Segue a história de Esther:

O abuso começou eu tinha sete anos. O que me faz hoje acreditar que não foi a primeira vez que ele fez isso e que muito provavelmente não foi a última é que a forma como ele agiu comigo era muito prática, ele não tinha medo. Ele era meu vizinho e era o cara legal da comunidade, que ajudava todo mundo. Era alguém em quem as pessoas confiavam. Minha família tinha uma situação financeira muito degradante e ele ajudou várias e várias vezes com dinheiro, comida e remédios. Um dia minha mãe disse “nega, vai na casa de fulano pegar alguma coisa, não sei se foi arroz ou fubá”. Eu já tinha ido outras vezes, mas essa vez ele me mandou ir esperar ele numa casa de veraneio e me deu a chave. Eu não entendi e fui achando que a comida estava lá. Cerca de cinco minutos depois ele entrou. A casa era quase toda vazia, mas tinha um colchão. Ele pôs o pênis para fora e foi me dando ordens e dizendo o que iria fazer. Tentei me esquivar, mas ele me segurou. Fui estuprada pela primeira vez nesse dia mesmo. Não foi uma coisa que ele foi preparando aos poucos, ele estava muito seguro do que estava fazendo. Provavelmente porque tinha feito muito isso e nunca foi pego.
 Quando terminou ele levantou, pegou um rolo de papel higiênico, se limpou, jogou o rolo de papel higiênico em cima de mim, disse “tá aqui” e mostrou a comida. “Quando você terminar aí”, eu estava chorando e acho que ele quis dizer quando me acalmasse, “quando terminar você fecha e enterra a chave na planta que fica do lado de fora da porta da cozinha”. A partir daí eram encontros diários, às vezes dois, três encontros por dia até os onze anos. Minha mãe nunca perguntava nada.
Ele me impunha medo, dizia que se eu contasse a alguém minha família ia morrer de fome. Isso se sustentava com o fato de eu ir diariamente buscar comida na casa dele. Às vezes eu estava na rua brincando e minhas irmãs me chamavam. Quando eu chegava em casa minha mãe mandava eu ir na casa dele buscar. Só depois de grande que percebi que teria sido mais fácil ela mandar as meninas buscarem em vez de irem me buscar para depois me mandar ir buscar. Mas se eu pensar muito sobre isso eu perco o prumo, nunca perguntei o motivo disso a ela. A sensação que eu tenho é que ela me vendeu por um prato de comida porque era o que acontecia, eu ia buscar a comida, era estuprada e voltava com a comida. Minha rotina era ir pra escola, voltar, ser estuprada, chorar, fazer o dever de casa, às vezes ser estuprada de novo, ir dormir.
Eu lembro de uma única vez em que eu fui espontaneamente. Meu pai estava muito doente na época e não podia fazer bicos, ele tinha um problema cardíaco sério e não podia fazer esforço algum. Ele não podia sair da cama e a gente estava numa situação complicadíssima financeira e chegou um dia que minha mãe nos chamou e disse que não tinha nada para a gente comer e que não sabia quando ia ter. Eu fui  lá na oficina dele e falei que estava precisando de dinheiro porque não tinha nada pra comer em casa. Ele falou “eu num disse a você”. Dessa vez eu não chorei, na minha cabeça fiz o que tinha que fazer. Nessa época eu tinha uns dez anos, estava bem habituada já a essa rotina de abuso. Ele me deu cinco reais. Menos de um ano depois, eu já com onze a gente se mudou e o abuso cessou. Esse, porque depois tiveram outros.
Eu procurei o centro de apoio a mulher da prefeitura do Recife para assessoria jurídica. Eles disseram que não podiam me ajudar porque o crime tinha prescrito. Que a lei nova de prescrição só cobria crimes a partir da vigência dessa lei. E que se eu processasse corria o risco de ele me processar de volta por difamação e calúnia porque não existia mais prova física do crime. E disseram que era melhor, já que eu estava me tratando, fazer um trabalho terapêutico em relação a isso e superar essa situação, a palavra foi superação que usaram lá.
Fui para casa, passei cerca de uma semana lendo todos os textos das leis, estatuto da criança, lei Maria da Penha, lei de prescrição do crime e encontrei que realmente há uma prescrição e que não é possível depois da prescrição mover uma ação penal, mas é possível mover uma ação indenizatória. [...] Se uma pessoa vítima de um abuso desenvolve um problema psicológico, mental, por conta do abuso isso é um dano permanente passível de indenização.
  Voltei lá e apresentei isso para elas, levei junto já laudos da minha médica ginecologista, da minha psicóloga e da minha psiquiatra, atestando a minha compulsão por me ferir, o transtorno obsessivo compulsivo e os demais transtornos psiquiátricos que eu desenvolvi ao longo dos anos em consequência do abuso. Aí disseram que era possível ter uma ação indenizatória sim, mas que ainda corre-se o risco de você ser retaliada, sem contar que é muito desgastante. Você está num processo terapêutico de superação de tudo isso e entrar com uma ação dessas vai demandar de você muita energia. Ou você vai ficar no meio do caminho do processo ou da terapia. Vai ser um desgaste para você e um dos dois não vai ser concluído. Hipoteticamente falando, você processando, ele pode te processar de volta e você chegar a ser presa. Há uma hipótese de você ser presa por calúnia. Principalmente porque eu citei que ele era uma pessoa influente na comunidade. Aí eu falei que hipoteticamente falando eu poderia colocar uma faca na minha bolsa e hipoteticamente falando eu poderia ir lá e dar vários golpes nele de faca, ligar para a polícia, sentar e esperar me levarem ou esperar que alguém chamasse a polícia. Ela olhou para mim com aquela cara de espanto, chamou na hora a psicóloga e me trancou numa sala com ela. A psicóloga passou quase duas horas tentando me convencer de que eu não fizesse isso. Eu disse a ela: eu já fiz! Semana passada eu fui lá com a faca. A diferença da minha hipótese é que eu não tive coragem de cravar nele. Quando eu cheguei na frente dele eu desabei e só consegui dizer que ele ia ser punido por tudo que ele fez de um jeito ou de outro. E foi por isso que eu procurei acessoria jurídica. Mas levei um banho de agua fria quando procurei. Inclusive a ação indenizatória que eu fiz depois não foi através do Serviço de apoio, foi pelo disque direitos humanos. Liguei e fiz a denúncia de abuso. Se não tivesse feito eu tenho certeza que tinha voltado lá e cravado a faca nele. 
[...] ela (a atendente) pôs urgência, mas só veio a ser acolhido cerca de quatro meses depois. Ligaram para mim da delegacia dizendo que eu precisaria ir lá prestar meu depoimento. O delegado foi super solícito e me disse o dia em que a escrivã de plantão era mulher. Eu marquei para aquele dia e voltei ao serviço de proteção à mulher, aí a advogada disse: é, já que já foi denunciado então vamos.  Como quem quer dizer, não era pra ir não, mas já que foi... Aí ela foi no dia do depoimento comigo.
  No tempo que passou entre eu fazer a denúncia e ela ser acolhida eu ia para a terapia só para cumprir horário, não conseguia falar de nada, só de coisas banais, tamponei meus sentimentos todos de novo. Se eu não tivesse falado e sido ouvida eu teria me destruído. Fui acolhida na delegacia, o delegado me disse para ficar a vontade e falar tudo. Mesmo assim o processo não foi para a frente porque precisava que alguém da minha família fosse testemunhar que eu ia todo dia me encontrar com ele. Meus irmãos disseram que iam testemunhar, mas nunca foram. Minha mãe não, ela disse que aquilo nunca tinha acontecido.

Uma vez eu estava em um conflito familiar pior que o normal porque estava desempregada e minha mãe e irmãs ficavam cobrando que eu desse dinheiro para poder morar e comer em casa. Todo dinheiro que eu pegava fazendo bicos elas tomavam e eu ficava sem nada para minha manutenção. Diziam até que água era para eu tomar da torneira porque a da geladeira era para elas. Chegou num ponto em que eu cheguei no meu limite e não dava mais para ficar lá, já estava com uma depressão muito severa. Resolvi sair e procurar alguma ajuda, tentei  um acolhimento num CAPS que ajuda também no aspecto sócio-econômico, um internamento no hospital psiquiátrico Ulisses Pernambucano, não consegui nada. Falei com minhas médicas e elas tentaram articular alguma coisa e não conseguiram, aí quando já era tarde da noite e eu não tinha para onde ir eu resolvi ligar para um órgão da prefeitura que recolhe pessoas em situação de rua. Eu expliquei a situação, que estava desempregada e sofrendo abuso financeiro da minha família. As pessoas da equipe disseram que eu só podia ficar uma noite porque eu tinha instrução, fazia faculdade e tinha uma família. No dia seguinte tive que voltar para casa.